Em maio de 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma decisão capaz de reacender a controvérsia sobre a natureza jurídica dos planos de previdência privada abertos, se securitária ou de investimento. O debate está vinculado ao Recurso Especial nº 2.004.210/SP.
Apesar da manifestação dos órgãos reguladores defendendo a exclusão do VGBL da partilha de bens por ocasião do falecimento da titular, o STJ decidiu, em um caso específico que trataremos a seguir, permitir que os valores referentes ao VGBL fossem partilhados em inventário.
O ponto central do caso em questão, examinado pelo STJ, refere-se à inobservância da legítima dos herdeiros necessários da titular (suas filhas) em favor do único beneficiário do VGBL (seu cônjuge). Diante das circunstâncias do caso, o STJ decidiu que, estando toda a parte disponível do patrimônio legada ao cônjuge, em caso de óbito da titular, o saque dos recursos pelo beneficiário feriria o direito hereditário legítimo das filhas, gerando uma burla ao regime sucessório vigente no Brasil.
Embora o STJ mantenha um longo histórico de entendimentos conflitantes sobre o tema da natureza jurídica dos ativos de previdência, é fundamental destacar que esta recente decisão deve ser compreendida pontualmente, aplicando-se apenas ao caso discutido e não sendo capaz de desvirtuar o entendimento majoritário de que o VGBL tem, sim, natureza preponderantemente de seguro, especialmente diante do que dispõe o art. 79 da Lei 11.196/2005, que faculta ao beneficiário do plano “independentemente da abertura de inventário ou procedimento semelhante” a opção entre o resgate das quotas ou recebimento de benefício de caráter continuado previsto em contrato. Tais ressalvas, favoráveis à classificação do VGBL como ativo de natureza securitária, constam, inclusive, no voto condutor proferido pelo relator do caso:
“Feitas essas considerações, importa esclarecer que, após análise de todos os fundamentos constantes das decisões desta Corte, firmei meu convencimento no sentido de que o caso concreto, por suas características peculiares, é exceção à regra e deve, portanto, receber tratamento diferenciado na exata proporção de suas peculiaridades. Entretanto, ressalto, essa compreensão é pontual e não pretende desvirtuar o entendimento de que, como regra, o VGBL tem natureza preponderantemente de seguro”.
Foram as particularidades do caso analisado pela Corte que levaram à conclusão diversa, como o fato de que a titular firmou o contrato em idade avançada (78 anos de idade), realizando único aporte cuja origem advinha da venda de uma casa. Além disso, a morte da titular teria ocorrido antes da conversão do VGBL em renda e pensionamento, ou seja, ainda no período de aportes no plano. Na visão do STJ, tais circunstâncias acentuaram “a natureza preponderante de investimento” do referido VGBL.
Distinção entre Seguro de Vida e Previdência Privada Aberta
Aprofundando a leitura dos fundamentos apresentados pelo STJ, destaca-se a distinção entre Seguro de Vida e o Plano de Previdência Privada Aberta, no sentido de que apenas o primeiro estaria isento do inventário de acordo com o art. 794 do Código Civil, que dispõe: “no seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito”.
As diferenças se manifestam na forma de captação, capitalização e tributação distintas entre o Seguro de Vida e o Plano de Previdência Aberta.
Na visão de um dos julgadores do STJ, os planos de previdência privada aberta se assemelham a uma aplicação financeira, permitindo ao investidor deliberar sobre valores de contribuição, regimes de capitalização, depósitos adicionais e resgates antecipados ou parcelados até o fim da vida. Por outro lado, nos seguros de vida, o capital segurado não é de titularidade do segurado, mas constitui obrigação da Entidade de Seguros, que é sujeita a condição, e a prestação somente será devida ao beneficiário quando, e se ocorrer, o seu implemento.
Manifestação do Setor de Seguros e Previdência
Embora o Recurso Especial nº 2.004.210/SP tenha sido julgado em caráter não vinculante, participaram das discussões no STJ o Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP, a Superintendência de Seguros Privados – Susep, a Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Complementar e Capitalização – CNseg, a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados, de Capitalização e de Previdência Complementar Aberta – Fenaseg, e a Federação Nacional de Previdência Privada e Vida – Fenaprevi.
Para o setor, os investimentos em VGBL e PGBL não devem integrar o acervo hereditário para fins de partilha de bens por se tratar de contrato tipicamente de seguro, no qual os valores pagos pelo segurado a título de contribuição são meros prêmios de seguro e a indenização paga pela seguradora será feita apenas e diretamente ao beneficiário indicado no produto contratado, seja ele o próprio segurado – no caso de cobertura por sobrevivência –, seja ele um terceiro beneficiário indicado – no caso de cobertura por morte, como estabelecido no art. 79 da Lei 11.196/2005: “no caso de morte do participante ou segurado dos planos e seguros de que trata o art. 76 desta Lei, os seus beneficiários poderão optar pelo resgate das quotas ou pelo recebimento de benefício de caráter continuado previsto em contrato, independentemente da abertura de inventário ou procedimento semelhante”.
A Fenaprevi apontou que o VGBL é definido como uma espécie de contrato de seguro de vida com cobertura por sobrevivência e está inserido na estrutura de regulação dos seguros privados por expressa disposição contida em ato normativo emanado dos órgãos competentes.
Precedentes anteriores do STJ e do STF
O cenário torna oportuna a lembrança da decisão proferida pela Terceira Turma do STJ em setembro de 2020 (REsp n. 1.726.577/SP), na qual se decidiu que os planos de previdência privada aberta, entre eles o VGBL, “têm natureza multifacetária”, de investimento ou de previdência.
No precedente, decidiu-se que durante o período em que são realizadas as contribuições e formação do patrimônio do VGBL ou PGBL, sobressai a natureza de aplicação financeira. No entanto, a partir do momento em que o investidor passa a receber os valores acumulados ao longo da vida, em prestações periódicas, como forma de complementação do valor recebido da previdência pública e com o propósito de manter determinado padrão de vida, sobressai a natureza securitária e de previdência complementar.
Em agosto de 2021, a Segunda Turma do STJ, ao julgar questão tributária vinculada ao Recurso Especial 1.583.638/SC, proferiu o entendimento de que o plano de previdência complementar, tanto na modalidade VGBL quanto PGBL, constituem espécie do mesmo gênero – planos de caráter previdenciário – que se diferenciam em razão do momento em que o contribuinte paga o IR sobre a aplicação.
Outros acórdãos do STJ também já pavimentaram o entendimento de que o VGBL não pode ser considerado herança.
Por último, mas não menos importante, lembremos que o Supremo Tribunal Federal também teve a oportunidade de afirmar (“obiter dictum”) a natureza securitária do VGBL, quando decidiu sobre a constitucionalidade da cobrança de alíquotas diferenciadas de CSLL para empresas de seguros no julgamento da ADI 5.485/DF, de relatoria do Ministro Luiz Fux e julgado em julho de 2020.
[1] (AgInt nos EDcl no AREsp n. 947.006/SP, relator Ministro Lázaro Guimarães, Quarta Turma, julgado em 15/5/2018; AgInt no AREsp n. 1.847.351/RS, relator Ministro Manoel Erhardt, Primeira Turma, julgado em 11/10/2021) e decisões monocráticas no mesmo sentido (AgInt no AREsp n. 1.804.980/RS, Ministro Gurgel de Faria, de 2/9/2021; AREsp n. 1.598.875/RS, Ministro Benedito Gonçalves; AREsp n. 1.739.948/RS, Ministro Sérgio Kukina, de 19/5/2022; AREsp n. 1.771.089/RS, Ministro Mauro Campbell Marques, de 16/8/2021; e AgInt no AREsp n. 1.797.886/RS, Ministro Herman Benjamin, de 4/11/2021).
Então, quais cuidados devemos tomar quando da instituição do VGBL como instrumento de planejamento sucessório?
O caso julgado, bem como a própria fundamentação do acórdão, nos fornece algumas diretrizes para a utilização adequada dos planos de previdência privada aberta no âmbito dos planejamentos patrimoniais, especialmente aqueles de viés sucessório. Embora seja importante reiterar que a decisão deve ser interpretada de forma isolada, alguns conceitos podem ser estendidos aos demais casos.
O primeiro deles diz respeito à preservação da parcela do patrimônio que compõe a legítima dos herdeiros. Como é sabido, a legislação brasileira define que metade do patrimônio deva ser destinado obrigatoriamente aos herdeiros necessários, conforme estabelecido no art. 1.829 do Código Civil. Neste sentido, quando a indicação do beneficiário do VGBL causar a redução do quinhão legítimo em razão da destinação de valores para um beneficiário específico, em detrimento dos herdeiros necessários, estaríamos diante de um potencial questionamento por parte dos herdeiros “prejudicados”. Isso, somado a outras características formadoras do VGBL, poderia resultar em uma interpretação judicial similar à analisada neste artigo, ou seja, que o VGBL deveria ser partilhado no inventário.
Essas outras características formadoras do VGBL relacionam-se a dois temas principais: a) o período da vida em que a contribuição é realizada; e b) o aporte único de um percentual relevante do patrimônio.
Com relação ao primeiro tema, podemos extrair da decisão do STJ que a caracterização do VGBL como ativo financeiro se deu, em grande parte, devido à sucessão da titular ter ocorrido ainda durante o período de contribuição para a formação do VGBL. Isso contribuiria para a interpretação favorável à natureza de aplicação financeira. De maneira inversa, caso o VGBL tivesse sido formado com antecedência suficiente para que a titular já tivesse ultrapassado o período de contribuição e iniciado o período de pensionamento, provavelmente teríamos a natureza securitária do VGBL reafirmada na decisão judicial ora discutida.
Quanto ao aporte único no VGBL, representativo de quase a totalidade do patrimônio da titular, embora não haja qualquer impedimento para isso, o caso analisado pelo STJ mostrou que há um olhar cauteloso do judiciário sobre esse tipo de operação. Parece-nos que as contribuições realizadas por períodos mais longos e com uma medida proporcional ao patrimônio total poderiam ter auxiliado os julgadores na compreensão da natureza securitária do VGBL, levando novamente a uma decisão diferente daquela proferida pelo STJ em maio deste ano.
Em síntese, podemos concluir com tranquilidade que a interpretação majoritária do judiciário brasileiro continua sendo aquela que trata da “natureza multifacetária” dos planos de previdência, admitindo o caráter securitário do VGBL e, portanto, sua equiparação aos ativos tutelados pelo art. 794 do Código Civil, ou seja, aqueles não considerados herança para todos os fins. A própria legislação brasileira prevê que os valores distribuídos ao beneficiário do VGBL ou PGBL independem de inventário ou qualquer outro procedimento semelhante. Da mesma forma, a própria agência reguladora classifica-o como uma espécie de seguro de vida. Portanto, não há modificação dessa regra a partir da decisão estudada.
Considerando, portanto, as importantes ressalvas presentes no voto que fundamentou a decisão, bem como os entendimentos anteriores do próprio STJ, proferidos em circunstâncias fáticas distintas, poderíamos concluir que a recente decisão é positiva para o mercado, uma vez que reforça a segurança jurídica em torno da concepção dos planos de previdência aberta como produtos integrantes da categoria de seguros e, portanto, isentos de inventário. Devemos apenas atentar para as características de cada caso e de cada família, modulando o produto com observância das premissas legais apresentadas.
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