No Brasil, cerca de 90% das empresas têm perfil familiar. Essas empresas respondem por 65% do PIB brasileiro e empregam quase 75% dos trabalhadores do país, segundo dados do IBGE.
Como entidades familiares que são, essas empresas apresentam características próprias e desafios muito diferentes daqueles experimentados pelas empresas abertas ao mercado e aos investidores institucionais. Um desses desafios, sem dúvida, é a sucessão.
Quando tratamos de sucessão no âmbito dos planejamentos patrimoniais, diversos temas são trazidos à mesa. Questões tributárias, acertos societários e financeiros, regras de administração, trâmites de inventário e partilha. Embora todos esses assuntos mereçam atenção, trataremos aqui apenas da questão societária relacionada à vocação hereditária na esfera familiar, ou seja, acerca do ingresso de terceiros estranhos ao núcleo consanguíneo no quadro de sócios da empresa familiar.
Conforme dispõe o Artigo 1.829 do Código Civil Brasileiro, em regra, os cônjuges sobreviventes são herdeiros legítimos. É comum um equívoco de interpretação no sentido de que o regime da separação total de bens estenderia seus efeitos de segregação patrimonial à herança, mas não é assim que funciona no Brasil. Quando tratamos de sucessão, mesmo o falecido tendo sido casado no regime da separação total de bens, o cônjuge sobrevivente herdará parte do seu patrimônio.
Isso pode se transformar em um problema quando o patrimônio em questão é a própria empresa da família, especialmente aquelas criadas nas gerações anteriores.
Um caso verdadeiro ocorrido há alguns anos elucida bem a controvérsia: tratava-se de uma empresa familiar de médio porte que havia sido transferida pelo patriarca aos três filhos, todos adultos na faixa dos 40/50 anos. Havia em curso um projeto de expansão dos negócios que requereria um esforço financeiro do grupo, auditorias, assessorias financeiras e uma série de metas a serem perseguidas. Por uma fatalidade, um dos irmãos sofreu um infarto fulminante enquanto jogava bola e infelizmente faleceu. A viúva, única herdeira do marido falecido, se apresentou à família com intenção de receber seus dividendos e se colocou contrária às metas de austeridade que estavam sendo desenhadas naquele momento. Como instrumento de pressão, parou de assinar documentos da empresa e iniciou uma dinâmica de conflito junto aos demais sócios, seus cunhados, e junto à administração da empresa. Três anos depois a empresa decretaria sua falência.
Quando pensamos nas holdings patrimoniais esse problema fica ainda mais evidente. É comum que as empresas patrimoniais familiares sejam compostas essencialmente por entes da família consanguínea, normalmente, pais e filhos. Quando consideramos a possibilidade de falecimento de um dos filhos, por exemplo, teríamos de enfrentar o mesmo problema com a admissão de genros ou noras como sócios da empresa familiar.
Notem que a ideia central aqui não é preterir o cônjuge sobrevivente de receber parte do patrimônio que lhe cabe, mas tão somente, permitir que seja definido com antecedência o que comporá esse quinhão a ser herdado pelo cônjuge falecido. No caso acima, se houvesse um planejamento prévio, poderiam ter sido destinados à esposa valores em dinheiro e/ou imóveis em vez de quotas da empresa familiar. Nesta hipótese, ela teria recebido normalmente sua parcela de direito e, provavelmente, teríamos evitado a falência da empresa.
Mas como fazer isso?
Além das mecânicas testamentárias já conhecidas, tivemos um avanço significativo no ano de 2022 quando o DREI (“Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração”) decidiu permitir aos sócios da sociedade limitada dispor em contrato social sobre os efeitos do falecimento nas quotas detidas pelo sócio falecido. No novo entendimento do DREI, os herdeiros não fariam jus às quotas propriamente ditas, mas tão somente ao direito de crédito decorrente do pagamento do preço das quotas pelos sócios remanescentes, conforme previsão de apuração dos haveres definida no contrato social.
Em outras palavras, a decisão do DREI passou a autorizar o rito particular de transferência das quotas entre os sócios pré-existentes da empresa, desde que essa mecânica estivesse devidamente pactuada no contrato social da sociedade, afastando a necessidade de tramitação dessa transferência de quotas pelo inventário e dispensando, com isso, a necessidade de apresentação do formal de partilha ou escritura extrajudicial de inventário e partilha, além de dispensar também a assinatura dos herdeiros do sócio falecido na alteração contratual da sociedade que trataria da transferência.
Voltando ao caso prático citado anteriormente e aplicando ao exemplo a nova interpretação do DREI, caso houvesse uma previsão no contrato social da sociedade no sentido de que, havendo o falecimento de um dos três filhos, as quotas desse filho falecido seriam automaticamente transferidas para os demais, ficaria expressamente impedido o ingresso da viúva na sociedade familiar, cabendo ela receber os valores correspondentes às quotas do marido falecido na forma de avaliação e critérios de pagamento previstos no contrato social.
Em resumo, esse novo entendimento do DREI passou a permitir que as famílias determinem com antecedência o destino das quotas da empresa familiar no caso do falecimento de um de seus membros, sem que isso implique na transferência desse patrimônio para fora do núcleo familiar consanguíneo. Mais do que isso, o entendimento do DREI permite a definição de uma mecânica societária que imponha a vontade familiar, evitando discussões alongadas e potenciais conflitos dentro do processo de inventário.
O fundamento da decisão do DREI está na aplicação do Art. 1.028 do Código Civil Brasileiro, que permite aos sócios livre disposição no contrato social sobre o tratamento a ser dado às quotas quando do evento morte. O dispositivo é interpretado em linha com a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19), que conferiu amplo espaço para a liberdade contratual das partes privadas, privilegiando os acordos particulares.
Em resumo, trata-se de uma inovação societária com ótima aplicabilidade no ambiente dos planejamentos patrimoniais, possibilitando ampliar a proteção do patrimônio das famílias e garantir a manutenção da empresa no núcleo familiar consanguíneo, afastando cenários indesejados de forma simples e eficientes. Basta planejar.
Gabriel Mercadante gmercadante@salaw.com.br +55 11 94551-9090